Num futuro indeterminado, um
processo de seleção permite que jovens com 20 anos de idade lutem para sair de
uma realidade miserável e ir para um mundo melhor, mais rico e mais justo, no distante
Maralto. Apenas 3% desses jovens serão selecionados e, para isso, terão que
provar seu mérito, em situações que analisam e julgam qualidades de cada um,
conforme determinado por aqueles que já estão “do lado de lá” e detém a
administração de todo o “processo”.
Claro, você já deve ter pensado
em Jogos Vorazes. Normal. Mas, antes de dizer que “os brasileiros copiaram os
gringos”, vale saber que 3% da Netflix é baseada na websérie homônima de 2009,
produzida pelos criadores da série antes do sucesso dos filmes de Katniss e sua
turma. Também vale ressaltar que adolescentes num futuro distópico lutando para
sobreviver ou derrubar a “elite limpa” não é exclusividade dessas duas histórias,
nem é nada novo, tanto no cinema e TV, quanto na literatura, quadrinhos ou animação.
Mas, a produção brasileira 3% é
exatamente isso: uma ficção científica feita por e para brasileiros! Só por isso já deveria ter a sua atenção. E mais: é uma série muito bem produzida, ainda que não seja
perfeita nem esteja nos moldes de produção de Westworld, por exemplo. Como já li
por aí, além de dinheiro, os americanos têm muita experiência no assunto, o que
faz muita diferença. Mesmo que, em alguns momentos o roteiro pareça que merecia
mais atenção e trabalho, mesmo que às vezes a direção de arte e figurino do “lado
de cá” pareça meio Os Mutantes da Record ou Caça Talentos da Globo e mesmo que
você encontre alguns furos e a interpretação de Bianca Comparato te incomode
(fãs de Jennifer Lawrence e Kristen Stewart podem gostar), você deveria
assistir 3%. Recomendo demais.
Aliás, acho que a série deveria
ser obrigatória a todos os estudantes do Ensino Médio, em escolas públicas e
privadas! Mas é claro que isso nunca vai acontecer, uma pena... Sim, a série
tem conotações políticas, metáforas sobre esquerda e direita, ricos e pobres,
cristãos e descrentes, governo liberal e democracia socialista, enfim. Tem até
referências diretas à ditadura e, como você já deve ter visto nos anúncios no
Youtube, também pega carona no Fora Temer para fazer seu marketing. Mas as ideias e
filosofias da série, suas metáforas, suas questões morais e éticas, vão muito
além da simplicidade de “comunas versus reaças”. Há nela muito mais sobre o ser
humano e seu comportamento social do que política simplista e maniqueísta. Principalmente sobre o ser
humano brasileiro! Coisa que um gringo nunca conseguiria fazer por nós.
Brilhante é, por exemplo, o
desenvolvimento do personagem Rafael (Rodolfo Valente) durante toda essa primeira
temporada. Muito bem escrito, na minha opinião. Nunca iria esperar que no final
ele tivesse o dilema que teve. Nunca esperamos por coisas assim. Da mesma
forma, excepcional é toda a jornada e construção de Joana (Vaneza Oliveira, ótima!)
e sua reviravolta inesperada, o que acontece também com Fernando (MichelGomes). Aliás, a maneira como Fernando é retratado é fantástica, num mundo que
trata cadeirantes como aberrações dignas de pena (tô falando do nosso). E o
personagem Ezequiel, então? Nunca sabemos se ele é vilão ou bandido, um
sentimento que muitos têm por figuras políticas, principalmente os “paladinos
da justiça e da família brasileira”.
No primeiro capítulo, já percebemos
que as coisas não tão perfeitas quanto aparentam ou deveriam. Há
questionamentos quanto ao Processo, tanto dos tacanhos guerrilheiros da Causa,
quanto internamente, pelos membros do Conselho que administra o sistema.
Enquanto os candidatos se engalfinham pela vaga, com direito a traições,
oportunismo e uso do sexo como ferramenta, e alguns tentam permanecer “íntegros”
e conseguir pelo próprio mérito, como foram ensinados, os funcionários e
membros do Processo tentam passar rasteira uns nos outros, descobrir segredos
obscuros e procurar por erros e provas de corrupção no Processo. Parece
familiar?
Espero que você passe pelos três
primeiros episódios e assista ao sensacional quarto episódio. Merecia um Emmy,
sério. É o melhor episódio de “confinamento” que já vi em uma série (estou
incluindo as gringas aqui)! Se continuar assistindo depois desse (ele pode
mexer com sua comodidade moral e ética e você pode não gostar), vai se
emocionar com o quinto episódio e a maravilhosa atuação de Mel Fronckowiak.
Provavelmente, vai se questionar sobre o que você faria, no sexto episódio, e
descobrir que escolhas entre A e B nunca são tão simples. O episódio 7 parecerá
óbvio, mas no final você vai soltar um “Eita, porra?!”, pode ter certeza. Tem
um gancho clássico, mas inesperado, como tem que ser. E, claro, o oitavo e
último episódio vai te deixar com gostinho de quero mais, querendo logo a
segunda temporada.
Como já disse aqui, a série não é perfeita, redondinha, mas tem muito mérito e, por ser uma série de ficção
científica brasileira, já é quase obrigação de ver, se você é fã desse gênero. Se
não, também assista. Há diálogos, cenas, ideais e questionamentos que você não
verá em nenhuma novela, nenhuma série global e nem em Black Mirror! Nada do discurso “pare de puxar o saco de gringo e assista produção nacional”, o que
estou te dizendo é que a série é realmente boa, e sim, está na hora de você
parar de elogiar tudo que é de fora e vir com pedras nas mãos para julgar
produções tupiniquins sem nem assistir. Estamos entrando em uma época de equiparação
internacional quanto à produção e mais “brasilianização” do conteúdo, e você
deveria fazer parte deste momento.
Claro, não vou falar só bem da
série. Como mencionei lá em cima (e você já deve ter lido por aí), a série tem
erros, sobretudo na construção do mundo futurista em que ela se passa. Mesmo com
a grande interpretação de João Miguel, o personagem Ezequiel tem momentos
gratuitos e sem sentido, e as vezes seu diálogo não condiz com o que se espera
do personagem. No começo, também não gostei dos flashbacks estilo Lost (e que
parece que todos os roteiristas de séries brasileiras adoram, não sei porque),
mas aos poucos eles vão fazendo mais sentido e sendo um pouco mais necessários,
mesmo que cheios de cenas redundantes.
Legal ver a atriz Viviane Porto
fazendo uma personagem de alto calão (me lembrou a Charlotte de Westworld). Aliás, uma coisa bacana da
série é que não existe distinção de raça inferior e superior quanto à cor da
pele e isso é muito bacana em uma produção brasileira (parece que algumas emissoras e produtoras ainda não aprenderam a fazer isso). Mas, por outro lado, os personagens negros ainda acabam, no final, a serem tratados com inferioridade (na minha opinião).
Outra coisa que incomoda é que, mesmo a série se passando em uma Amazônia
devastada, ainda se parece muito com São Paulo. Sim, a série foi rodada na capital
paulista. Não é isso, é toda a história, seus personagens, as divisões de
classe e como elas se comportam... Soa muito paulistano, para mim.
Mesmo assim, são erros que vemos
em muitas séries gringas e que podem ser corrigidos e melhorados em próximas
temporadas e em produções futuras. Mesmo com alguns erros de roteiro e direção,
3% ainda é muito superior a qualquer outra série brasileira que eu tenha visto
até hoje. E foi certeiro a série ser adotada pela Netflix, e não
para um canal de TV aberta, por exemplo, o que destruiria a série, e não
atingiria o público certo.
Enfim, mostre que merece curtir
séries de ficção, faça por merecer o título de “nerd”, “geek” ou qualquer outro
rótulo besta que tenham lhe posto por passar as noites vendo séries no Netflix, e assista 3%.
Parte do elenco participará do painel da Netflix na CCXP desse ano, no domingo 04/12. Aproveite!
;)
Nota: 7,5
Veja os 3 episódios de 2009, feitos para o web:
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