domingo, 14 de fevereiro de 2016

Sicario e sua Narrativa Visual



Sim, é um TEXTÃO! 



Sicario é um dos filmes indicados ao Oscar 2016 na categoria de Melhor Fotografia. O diretor de fotografia, Roger Deakins, tem um currículo invejável. Ele cuidou da fotografia de grandes obras como O Grande Lebowski, 1984, O Jardim Secreto, Um Sonho de Liberdade, Onde os Fracos não tem Vez, e mais recentemente Prisoners e 007 - Skyfall. Sua parceira com o diretor Dennis Villeneuve em Prisoners já sem mostrou fantástica, e agora a dupla está junta novamente em Sicario.



"Mas Sérgio, o que esse filme tem de diferente para ser indicado ao Oscar? Porra, sou bem mais o DiCaprio lutando com o Urso e tal. As cenas do Regresso pareciam aqueles CG's do Call Of Duty. MUITO LOCO.... MASSAVÉIO. E as explosão do Mad Max? Caralho, aquele filme foi pica demais. O que esse tal de Sicario tem de diferente? Só umas paisagens e um monte de deserto. É uma merda. O Regresso já ganhou tudo, seu vacilão. VAI DICAPRIO!"


Meu caro leitor, uma bela fotografia é mais do que cenas com ótimas paisagens. É usar, literalmente, cada recurso visual possível para ajudar a contar a história. Nessa análise um pouco mais aprofundada, vou tentar mostrar como Villeneuve e Deakins nos mostram visualmente o mundo de moralidade ambígua e distorcida de Sicario. Sim, é um TEXTÃO à lá Marcelo Hessel do Omelete. Sei que tem muita gente que não gosta disso, mas vou ter que ser chato aqui. O texto está cheio de SPOILERS, portanto assista o filme antes de ler o artigo. Isso não é um My Two Cents About. Volte outro dia ou... Aproveite esse texto?


O diretor canadense, Dennis Villeneuve nos entregou belos filmes que abordam a complexidade da moral humana (Incêndios, Prisoners e O Homem Duplicado). Em Sicario, isso não é diferente. Parece ser um filme simples sobre a luta de forças especiais americanas contra um cartel de drogas na fronteira dos Estados Unidos com o México. Um filme com um ritmo aparentemente “morno” e apreensivo, quebrado com momentos de extrema violência e muito suspense. Mas o filme trabalha muito bem vários elementos temáticos em cena como cores, ambientes e “limites”. A ideia do filme é que as várias formas de ideias, conceitos e limites são usadas para classificar e categorizar o nosso mundo e nossa sociedade (Moralidade, Bom e Mal), mas esses limites e ideias não só são frágeis, como também são sem valor ou não tem representatividade alguma.






Para mostrar isso o diretor usa muito bem às cores, iluminação, transparência e translucidez para explorar a relação dos conceitos do Bem e Mal. Ele desestabiliza a linha de pensamento de vários personagens, fazendo-os se questionarem suas próprias falácias e ilusões. Ele faz nos lembrar de que a realidade do nosso mundo geralmente não é tão simples como um conceito de “Preto & Branco”. A metáfora visual que é mais frequente no filme é a troca entre luz e escuridão e o uso exagerado de uma cor neutra, bege. Seja no deserto, no galpão do cartel, nos corredores da CIA ou na sala de interrogação, o filme é saturado com esta paleta bege. Em um conceito de moralidade, a cor bege faz uma alusão a natureza ambígua. A personagem de Emily Blunt, Kate, é introduzida no começo do filme dentro de uma van policial escura, com pequenas faixas de luz entrado pela janela do veículo. Ela pode ser vista com uma luza que está prestes a penetrar na escuridão de um mundo corrupto e sem lei. Quando uma explosão mata vários de seus parceiros, sua personagem entra em um cenário de moralidade ambígua, e suas convicções serão postas em duvida.






Logo depois encontra dois personagens misteriosos: Matt (Josh “GONNIES” Brolin) e Alejandro (Benicio Del Toro). Os dois são figuras enigmáticas, e ambos estão vestidos com a cor bege. Alejandro acaba cativando mais Kate, já que ele se recusa a revelar sua motivação e sua função em toda a operação. Isso acaba intrigando Kate. A personagem de Emily Blunt é uma policial que acredita nos princípios da lei e na justiça social, e quase sempre está vestida com a cor azul. Quando Alejandro e Matt estão dentro dos prédios federais, ações policiais ou em algum tipo de supervisão, eles procuram estar vestidos com a mesma cor de Kate (Azul), mas quando estão em seus habitats naturais, em situações onde a lei e a conduta moral parece não existir, eles estão vestidos de novo em bege. E neste mundo de ambiguidade nós sempre vemos Kate totalmente deslocada. Seu idealismo é sempre representado com mais metáforas visuais de luz e escuridão. Quando ela desafia a autoridade para impor justiça e seguir o código de conduta padrão, nós a vemos através de uma câmera de vigilância em preto e branco  na cena do banco.











Ela tenta impor a todo o momento seus ideais de “Bem e Mal”, mas com o passar do filme seu idealismo prova ser um tanto quanto ingênuo. Ao invés de ser uma virtude, acaba virando sua fraqueza. Ela perde a fé na tal da “justiça social” e isso é mostrado através de sua camiseta azul. Ela começa no azul pálido, passando para cinza, até chegar a um branco desgastado. Ela é a luz na escuridão que foi engolida pela violência e desespero. A incerteza moral acaba dominando a sua situação. Alejandro praticamente se torna uma representação física da escuridão. Vestido com uniforme preto e por muitas vezes é visto dentro de sombras. No último encontro de Kate e Alejandro, Kate é incapaz de sacrificar tudo por suas convicções, provando sua falta de poder para realizar alguma mudança significativa.







Mas não é só a paleta de cores que influencia a desconstrução de moralidade de Sicario. O diretor usa variados níveis de opacidade e transparência para fazer alusão dessa frágil classificação de moral. No começo, a barreira entre o bem e o mal é mostrada de uma forma óbvia: Paredes fortes que escondem terríveis segredos na cena inicial. O mal que está escondido em paredes escuras. Vemos vários corpos escondidos nas paredes pelo Cartel. Mas no decorrer do filme, vemos várias cenas com janelas transparentes, mas ainda sim escondendo segredos. Líderes do cartel falando no telefone ou líderes da polícia decidindo ações, enquanto a personagem Kate está do lado de fora esperando e especulando sobre o que vai acontecer. Apesar da suposta transparência do sistema de justiça, a verdade ainda está escondida, e a intenção de moralidade daqueles que estão no poder está guardada para eles mesmos. À medida que o filme continua, vemos várias barreiras visuais: Cortinas, divisões em estabelecimentos fechados, partículas de poeira nos cenários ou o reflexo dos personagens em janelas. O filme mostra visualmente que a simplicidade do “bem e mal” só funcionam em uma escala quase minúscula.




Esse mesmo conceito de que o mal se esconde atrás de paredes escuras, cai por terra no final do filme quando finalmente vemos o personagem que aparentemente representa o grande mal na trama e neste mundo. Ele está jantando com sua família do lado de fora de sua casa, sem paredes e sem nenhuma proteção aparente. A principal figura do cartel é mostrada ironicamente como a figura mais exposta e vulnerável visualmente. Quase como uma vítima. O filme mostra que as noções de justiça e moral de Kate são baseadas apenas em percepções e rótulos, quase que só confiando nessas instituições. Ela sempre pergunta de que corporações são os personagens. Se eles são do FBI, DEA ou CIA. Depois relata para o seu parceiro as suas impressões sobre eles. Diz que são “Cowboys”. Depois diz que o seu parceiro é só um Redneck (gíria para caipira nos EUA). E muitos desses personagens deixam recados e conselhos para Kate. Tome cuidado com esse tipo de policial ou aquele outro tipo de policia, etc. Ela tenta acreditar nessas instituições e “membros” da sociedade. Os paralelos que Kate faz entre o crime e a falta de lei, permitem que ela raciocine o seu envolvimento em toda esta “briga”, mas se mostram frágeis e com mudanças frequentes. Linhas turvas que levam para uma quase anarquia no final.




O personagem Alejandro, mais uma vez servindo de exemplo desta desconstrução dos “Classificadores da Moral”, perde o seu nome, já que outros personagens começam a chama-lo de “Medelín”. Quando escutamos este nome sendo referenciado no começo do filme no briefing do cartel, temos um corte para uma cena de um homem que supostamente é um traficante do cartel, mas que logo vemos que é um policial.






Este personagem sempre aparece durante o filme, fazendo acreditar que o seu papel vai ter alguma importância no final. Mas ele é assassinado a tiros em uma estrada no final do filme. Seu papel não é mais tão importante como os outros vários “capangas” do cartel ou de outros bandidos que morreram nessa cruzada, mas a sua morte nós faz questionar se foi tão trágica quanto às outras já que vimos que esse personagem tinha família. O filme sugere que não temos respostas fáceis para essas perguntas e, talvez, nenhuma resposta concreta e definitiva mesmo. A última cena do filme resume isso visualmente: Crianças, figuras que ainda estão inocentes para a realidade ao seu redor, jogando o seu futebolzinho em um campo de terra batida (mais bege). Dois lados definidos e justos, com regras e ordem. Um tiroteio perto do campo ameaça tirar o estado de inocência das crianças, despertando elas para sua cruel realidade em que o "Bem e o Mal" perdem todo o seu significado real. O filme mostra que essa simplicidade só existe neste mundo das crianças. A moralidade não pode ser presa na simples distinção entre o "Preto e o Branco", mas sim em um deserto de bege, com elementos que estão sempre mudando e que nunca poderemos entender totalmente.




Espero muito que o filme leve o Oscar de Melhor Fotografia. É um trabalho fantástico desta dupla de cineastas. Um dos melhores filmes de 2015. 


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